quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O derradeiro adeus

O dia começou com um sol tímido a espreitar por entre as nuvens. Porventura os mais desprevenidos foram apanhados pela chuva miudinha que caia sobre a cidade. Em plena hora de ponta alguns condutores apressados mudavam de trajetória na tentativa da faixa do lado ser mais rápida do que aquela por onde circulavam. Quando o telefone tocou encontrava-me no local onde estou todas as manhãs. Do outro lado da linha uma voz não familiar certificava-se que eu era a destinatária da mensagem. Pediram-me para me dirigir ao hospital; tinhas sofrido um grave acidente de viação e a situação clinica era deveras complicada. Não fui bem-sucedida na tentativa de saber mais pormenores sobre o ocorrido, a pessoa que ligou deve ter notado na voz o quanto a notícia me transtornou. Depois de terminar a conversa mantive-me imóvel, sem reação, com o telemóvel silencioso encostado ao ouvido. Deixei de ter noção do que acontecia à minha volta; confesso que por momentos, deixei de fazer ideia até de quem era. Atordoada com o teor da notícia apanhei um meio de transporte para a outra margem do Tejo. Demorei aproximadamente meia hora para chegar ao Hospital. A urgência hospitalar estava com o movimento próprio de uma semana que antecedia um feriado prolongado durante o fim-de-semana. Não era uma semana normal estávamos em plena época Pascal. Dirigi-me ao guichet de informações e relatei a conversa, a senhora do outro lado do vidro, pediu-me para aguardar na sala de espera até alguém falar comigo. Não demorou muito tempo até aparecer na sala de espera uma senhora de bata branca com uns papéis na mão – presumi que era comigo que ela pretendia falar - começou por explicar o quadro clinico e  os procedimentos adotados. Com o estado psicológico debilitado retive pouco das palavras «tratou-se de um acidente de automóvel muito violento, fizemos o que nos era possível, infelizmente o diagnóstico é muito reservado» - senti de novo aquela sensação que há menos de uma hora me invadira, uma espécie de cratera abria-se diante dos pés puxando o meu corpo para o fundo. Depois da médica se afastar, respirei profundamente e caminhei com passos curtos até ao piso da Unidade de Cuidados Intensivos. Com a dor de sofrimento estampada no rosto uma enfermeira dirigiu-me palavras solidárias «lamento, tenha força». Não lhe respondi por dificuldade verbal em articular as palavras, por essa altura um mar de lágrimas brotavam dos meus olhos. Fiquei parada junto à cama a olhar incrédula para um rosto que não reconheci como teu. Fixei a visão num tubo transparente inserido na tua narina direita, os olhos outrora de um castanho amendoado estavam fechados, os músculos do rosto flácidos deram-me a sensação que diante de mim estava um cadáver. Era ensurdecedor o som das máquinas a fazer o (im)possível para te manter ligado à vida. Doeu demais pensar que o corpo físico que estava ali à minha frente já não tinha alma – aquele corpo já não tinha consciência – estava simplesmente lá!

sábado, 19 de outubro de 2013

Era uma vez...



Neste dia tão especial gostava de escrever umas quantas palavras que nos anos seguintes assinalassem a data. Começo por dizer-te aquilo que muitas vezes ouviste da minha boca: o quanto fiquei grata ao destino por um dia nos ter cruzado. Somos o exemplo que mesmo há distância os  sentimentos quando são fortes não morrem. O sentimento de amizade é de tal forma intenso que quando une determinadas pessoas é para sempre! Amigo é toda aquela pessoa que nos estende as mãos sem que nós peçamos para o fazer. Falar sobre  ti é fácil e simultaneamente difícil. É fácil porque tu és um excelente ser humano. Difícil porque receio não ter a habilidade suficiente para  exprimir num punhado de letras toda a ternura que sinto por ti. Os laços que nos unem são um conjunto de afetos de tal forma verdadeiros que até em simples frases que me diriges sinto sempre o teu ombro amigo como um porto de abrigo pronto a  proteger. Mas vamos falar de ti. Hoje quando vi as fotos que assinalavam o momento tão especial para o resto dos teus dias, os meus olhos instantaneamente, foram invadidos por lagrimas e o meu coração encheu-se de uma grande alegria. O espaço histórico que vos acolheu conferiu a necessária solenidade ao ato, onde ambos os protagonistas pareciam retirados de um magnifico conto de fadas. E, tal como sempre acontece nesses contos infantis, os meus sinceros votos viajam até ao final da vossa história onde reza:“…e, viveram sempre felizes para todo o sempre”!

sábado, 12 de outubro de 2013

Uma escada para o céu


Não me recordo do dia em que a D. Ana partiu. Talvez já em criança gostasse de preservar as lembranças boas em detrimento das más. Costumava visitá-la mais amiúde durante as férias escolares. Foi ela que me ensinou a arte do croché, fazíamos pequenas rosetas que depois de unidas resultavam num conjunto muito agradável de visualizar e aos meus olhos pareciam coisa de grande habilidade. Creio que a D. Ana tinha a paciência das senhoras de outros tempos que não se importavam em dispensar  atenção às crianças que as procuravam. Já não recordo o pretexto que utilizava para lhe tocar à porta e depois galgar a grande escadaria até ao quatro-andar onde ela residia. O prédio não dispunha de elevador, talvez por isso a D. Ana raramente saia de casa. Sempre a conheci doente e, também não me recordo do nome da enfermidade que lhe dificultava muito os movimentos físicos. A D. Ana passava grandes períodos do dia sozinha e talvez por isso gostava de me receber para ajudar a quebrar um pouco o isolamento. Ela era mãe do meu amigo de infância Toni, o seu filho mais novo. Tinha outro filho varão de nome Carlos. O marido António devido à doença da esposa desdobrava-se entre o sustento da casa e as compras domésticas. Não chorei a morte da D. Ana porque aos olhos de uma criança de oito, nove anos o sentimento de perda é de difícil compreensão. Faço-o agora. Ao escrever esta memória sinto um ligeiro aperto no coração ao mesmo tempo que as lágrimas invadem o meu olhar. Neste momento eu própria tenho mais idade do que aquela que a D. Ana possuía no tempo em que a visitava. Tenho dificuldade em lembrar-me dos traços do seu rosto, ou mesmo da cor dos seus cabelos mas guardo comigo a melhor de todas as recordações, a amabilidade, a ternura do seu olhar. Devido à doença que a atormentava nem consigo imaginar o enorme esforço fisco que ela despendia só para me abrir a porta de casa. Onde quer que esteja desejo-lhe um merecido descanso ao mesmo tempo que lhe agradeço por ela pertencer às felizes memórias da minha infância.