sábado, 12 de outubro de 2013

Uma escada para o céu


Não me recordo do dia em que a D. Ana partiu. Talvez já em criança gostasse de preservar as lembranças boas em detrimento das más. Costumava visitá-la mais amiúde durante as férias escolares. Foi ela que me ensinou a arte do croché, fazíamos pequenas rosetas que depois de unidas resultavam num conjunto muito agradável de visualizar e aos meus olhos pareciam coisa de grande habilidade. Creio que a D. Ana tinha a paciência das senhoras de outros tempos que não se importavam em dispensar  atenção às crianças que as procuravam. Já não recordo o pretexto que utilizava para lhe tocar à porta e depois galgar a grande escadaria até ao quatro-andar onde ela residia. O prédio não dispunha de elevador, talvez por isso a D. Ana raramente saia de casa. Sempre a conheci doente e, também não me recordo do nome da enfermidade que lhe dificultava muito os movimentos físicos. A D. Ana passava grandes períodos do dia sozinha e talvez por isso gostava de me receber para ajudar a quebrar um pouco o isolamento. Ela era mãe do meu amigo de infância Toni, o seu filho mais novo. Tinha outro filho varão de nome Carlos. O marido António devido à doença da esposa desdobrava-se entre o sustento da casa e as compras domésticas. Não chorei a morte da D. Ana porque aos olhos de uma criança de oito, nove anos o sentimento de perda é de difícil compreensão. Faço-o agora. Ao escrever esta memória sinto um ligeiro aperto no coração ao mesmo tempo que as lágrimas invadem o meu olhar. Neste momento eu própria tenho mais idade do que aquela que a D. Ana possuía no tempo em que a visitava. Tenho dificuldade em lembrar-me dos traços do seu rosto, ou mesmo da cor dos seus cabelos mas guardo comigo a melhor de todas as recordações, a amabilidade, a ternura do seu olhar. Devido à doença que a atormentava nem consigo imaginar o enorme esforço fisco que ela despendia só para me abrir a porta de casa. Onde quer que esteja desejo-lhe um merecido descanso ao mesmo tempo que lhe agradeço por ela pertencer às felizes memórias da minha infância.  

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