Não me recordo do dia em que a D. Ana
partiu. Talvez já em criança gostasse de preservar as lembranças boas em
detrimento das más. Costumava visitá-la mais amiúde durante as férias
escolares. Foi ela que me ensinou a arte do croché, fazíamos pequenas rosetas
que depois de unidas resultavam num conjunto muito agradável de visualizar e aos meus olhos pareciam coisa de grande habilidade. Creio que a D. Ana
tinha a paciência das senhoras de outros tempos que não se importavam em
dispensar atenção às
crianças que as procuravam. Já não recordo o pretexto que
utilizava para lhe tocar à porta e depois galgar a grande escadaria até
ao quatro-andar onde ela residia. O prédio não dispunha de elevador, talvez por
isso a D. Ana raramente saia de casa. Sempre a conheci doente e, também não me
recordo do nome da enfermidade que lhe dificultava muito os movimentos físicos.
A D. Ana passava grandes períodos do dia sozinha e talvez por isso gostava de
me receber para ajudar a quebrar um pouco o isolamento. Ela era mãe do meu
amigo de infância Toni, o seu filho mais novo. Tinha outro filho varão de nome
Carlos. O marido António devido à doença da esposa desdobrava-se entre o
sustento da casa e as compras domésticas. Não chorei a morte da D. Ana porque
aos olhos de uma criança de oito, nove anos o sentimento de perda é de difícil
compreensão. Faço-o agora. Ao escrever esta memória sinto um ligeiro aperto no
coração ao mesmo tempo que as lágrimas invadem o meu olhar. Neste momento eu
própria tenho mais idade do que aquela que a D. Ana possuía no tempo em que a
visitava. Tenho dificuldade em lembrar-me dos traços do seu rosto, ou mesmo da
cor dos seus cabelos mas guardo comigo a melhor de todas as recordações, a
amabilidade, a ternura do seu olhar. Devido à doença que a atormentava nem
consigo imaginar o enorme esforço fisco que ela despendia só para me abrir a
porta de casa. Onde quer que esteja desejo-lhe um merecido descanso ao
mesmo tempo que lhe agradeço por ela pertencer às felizes memórias da minha
infância.
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