Esta
história tem mais de vinte anos tem exactamente vinte e dois para ser precisa.
Foi pela mão de uma querida amiga que conheci um médico daqueles há moda antiga
que para além das competências de medicina auscultava mais do que o interior
dos seus doentes permitia. Independentemente de se ter hora marcada para uma consulta
com o Dr. Vinagre os seus utentes já sabiam que podiam esperar mais do que
habitual pela sua vez de atendimento. Este médico estava há muito em Sintra.
Todos o conheciam e por todos era estimado. Não sei se algum dia soube a sua
especialidade clínica mas pouco importa,
ele era competente no seu ofício e, além disso gostava do que fazia e das
pessoas que vinham até ele. Existem profissões técnicas para as quais não basta
possuir aquele tipo de inteligência acima da média da população há que juntar
competências humanas. Na minha opinião apenas a junção da técnica com
características vocacionais permite o desempenho de excelência aos médicos, aos
assistentes sociais, aos juízes, aos enfermeiros, aos professores e a tantas
outras profissões que lidem directamente com pessoas. Não me irei dispersar vou
voltar a falar do Dr. Vinagre. Como há pouco relatei a minha amiga era sua
paciente e no conhecimento dele confiava para realizar os diagnósticos clínicos
e para receber conselhos pessoais. Houve um dia que fiquei doente e ela não só
me aconselhou este médico para curar a minha enfermidade da altura
como ela própria me acompanhou à consulta. Se ela confiava nas aptidões deste
médico eu confiava mais ainda nas aptidões dela. A relação que desenvolvi com
ela em tantos anos para mim só tem equivalência com o tipo de relação que
desenvolvi com a minha irmã de sangue. Só por curiosidade quando me casei tive
o direito a ter duas madrinhas, a minha irmã e a minha amiga de coração. Talvez
tivesse sido esta a fórmula que encontrei alguns anos mais tarde para
homenagear uma pessoa que influenciou de maneira tão positiva o meu trajecto de
vida. Mas não é dela que quero falar. É certo que muitas das características do
Dr. Vinagre me foram contadas por ela mas, também, tive o privilégio de escutar pessoalmente (pelo menos uma vez) algumas das suas histórias. O que me
fascinou naquele médico foi o método simples que utilizava para entrar nas
“vidas das outras pessoas”. Contou-nos
no dia da consulta que em qualquer lugar por onde passava observava os
comportamentos dos outros, escutava as suas conversas, e depois das pessoas
partirem imaginava os seus quotidianos. Disse-nos que uma vez num supermercado
não conseguia ouvir bem a conversa entre duas pessoas então aproximou-se das
senhoras, mexeu num dos produtos da prateleira para disfarçar a intromissão e
poder ouvir melhor o que falavam. Outras vezes dizia, sentava-se num banco de
jardim e direccionava o olhar e os sentidos para escutar as conversas e ali
ficava horas. Dizia que ganhava novas experiências de vida apenas como
observador. Há muito que o Dr. Vinagre já não está entre nós. O que impressiona
é verificar que alguém com quem tive tão pouco contacto me deixou um legado para
o resto dos meus dias. Talvez por possuir algumas das suas características de
observação, também, gosto de direccionar os meus sentidos para os diálogos dos
outros e, tal, como ele, imagino os seus quotidianos depois de partirem. É um exercício
solitário entre a multidão, onde me abstraio de muitos sons e imagens para me
fixar em determinadas pessoas. É com este tipo de matéria-prima que muitas
vezes construo as minhas histórias inventadas que de ficção podem ter apenas os
nomes de alguém com quem nunca falei mas com quem tive o privilégio de me
cruzar.
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