domingo, 22 de setembro de 2013

Conversas dos outros

Esta história tem mais de vinte anos tem exactamente vinte e dois para ser precisa. Foi pela mão de uma querida amiga que conheci um médico daqueles há moda antiga que para além das competências de medicina auscultava mais do que o interior dos seus doentes permitia. Independentemente de se ter hora marcada para uma consulta com o Dr. Vinagre os seus utentes já sabiam que podiam esperar mais do que habitual pela sua vez de atendimento. Este médico estava há muito em Sintra. Todos o conheciam e por todos era estimado. Não sei se algum dia soube a sua especialidade clínica  mas pouco importa, ele era competente no seu ofício e, além disso gostava do que fazia e das pessoas que vinham até ele. Existem profissões técnicas para as quais não basta possuir aquele tipo de inteligência acima da média da população há que juntar competências humanas. Na minha opinião apenas a junção da técnica com características vocacionais permite o desempenho de excelência aos médicos, aos assistentes sociais, aos juízes, aos enfermeiros, aos professores e a tantas outras profissões que lidem directamente com pessoas. Não me irei dispersar vou voltar a falar do Dr. Vinagre. Como há pouco relatei a minha amiga era sua paciente e no conhecimento dele confiava para realizar os diagnósticos clínicos e para receber conselhos pessoais. Houve um dia que fiquei doente e ela não só me aconselhou este médico para  curar a minha enfermidade da altura como ela própria me acompanhou à consulta. Se ela confiava nas aptidões deste médico eu confiava mais ainda nas aptidões dela. A relação que desenvolvi com ela em tantos anos para mim só tem equivalência com o tipo de relação que desenvolvi com a minha irmã de sangue. Só por curiosidade quando me casei tive o direito a ter duas madrinhas, a minha irmã e a minha amiga de coração. Talvez tivesse sido esta a fórmula que encontrei alguns anos mais tarde para homenagear uma pessoa que influenciou de maneira tão positiva o meu trajecto de vida. Mas não é dela que quero falar. É certo que muitas das características do Dr. Vinagre me foram contadas por ela mas, também, tive o privilégio de  escutar pessoalmente (pelo menos uma vez) algumas das suas histórias. O que me fascinou naquele médico foi o método simples que utilizava para entrar nas “vidas das outras pessoas”.  Contou-nos no dia da consulta que em qualquer lugar por onde passava observava os comportamentos dos outros, escutava as suas conversas, e depois das pessoas partirem imaginava os seus quotidianos. Disse-nos que uma vez num supermercado não conseguia ouvir bem a conversa entre duas pessoas então aproximou-se das senhoras, mexeu num dos produtos da prateleira para disfarçar a intromissão e poder ouvir melhor o que falavam. Outras vezes dizia, sentava-se num banco de jardim e direccionava o olhar e os sentidos para escutar as conversas e ali ficava horas. Dizia que ganhava novas experiências de vida apenas como observador. Há muito que o Dr. Vinagre já não está entre nós. O que impressiona é verificar que alguém com quem tive tão pouco contacto me deixou um legado para o resto dos meus dias. Talvez por possuir algumas das suas características de observação, também, gosto de direccionar os meus sentidos para os diálogos dos outros e, tal, como ele, imagino os seus quotidianos depois de partirem. É um exercício solitário entre a multidão, onde me abstraio de muitos sons e imagens para me fixar em determinadas pessoas. É com este tipo de matéria-prima que muitas vezes construo as minhas histórias inventadas que de ficção podem ter apenas os nomes de alguém com quem nunca falei mas com quem tive o privilégio de me cruzar.

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